28.9.04

CINCO MINUTOS

"Este silêncio salpicado de grilos transporta-me de repente para Nampula, estou a ouvir as sirenes dos quartéis, quando correu o boato que Jorge Jardim arregimentara capangas para fazer um golpe de Estado...

Não gosto do silêncio! Enerva-me. A qualquer momento pode explodir uma armadilha, uma granada, uma emboscada.....
O silêncio é perigoso e a noite assusta. Tudo se faz na calada da noite: planos, conspirações, crimes.
A vida é um pesadelo e esta terra demasiado pequena para a minha ânsia de voar.

Já tenho o material que preciso... O velho e fiel isqueiro, memória do tempo em que fumava... Até esse prazer me retiraram. Por causa da Florentina. Dizia que fazia mal aos meninos e que impregnava a casa de um cheiro que ela não suportava. Os meninos... Os meninos que já não o são. A Almerinda seguiu o seu caminho, tirou o curso de Bióloga, talvez influenciada por tantos anos de contacto com os animais do quintal... As galinhas... Esse animal tão importante para mim, já que a qualidade dos seus ovos são a salvação da minha mercearia. Mesmo nestes tempos de crise, os ovos levam longe a fama da Mercearia do Afonso. A Almerinda já não precisa de mim. Está em Lisboa, a pouco mais de uma hora daqui e nunca arranja tempo para nos visitar. Já não sou o seu protector. O Filipe... hum... Esse nunca precisou de protector! Sempre foi o “Ai Jesus!” da mãezinha, que teimava sempre em defendê-lo perante as suas traquinices, e mais tarde, durante as nossas discussões. Está em Montemor-o-Novo. É gerente de uma grande superfície comercial!! Até no seu percurso profissional me resolveu contrariar! Um hipermercado, esses monstros devoradores do pequeno comércio... O verdadeiro comércio!!!

Está uma noite fantástica!!!!
Os morcegos rodopiam em direcção à luz dos candeeiros em busca de alimento, os cães dos quintais que já me conhecem, de tanto passar por estas ruas, parece que me chamam à passagem.....
Há aromas de Verão no ar nocturno. Pêssegos pendem dos muros, flores derramam-se das sebes, e parece que a Natureza se pôs mais atraente para tentar seduzir-me.

Fecho os olhos e gozo uma plenitude imaginada. Acabo de fazer a coisa mais importante da minha vida após um jantar memorável de feijoada de choco, cozinhada com mestria, coroado por uma sericaia inexcedível, além de umas apetitosas gambas e de um Monsaraz tinto de regalar que degustei no melhor restaurante da terra.

Mas que noite maravilhosa!! Estão todos recolhidos no conforto das suas casas, no seu mundo entre quatro paredes. Nas suas vidas tristes, sem emoção... Nem são capazes de desfrutar o céu alentejano, com um infinito de estrelas que olham para nós, que falam connosco. Elas a verem televisão, eles nas tascas. Odeio-os!! Julgam-se superiores a mim. Não viveram metade do que eu vivi. Sabem o que é o inferno? Vão saber o que é um pouco do Inferno esta noite! São capazes de ser felizes nesta terra? Eu não sou. Neste momento já não sou.... Estou farto de ser um homem exemplar. “Bom dia Sr.Afonso!! Dê-me 2 dúzias de ovos que a minha filha vem cá passar o fim-de-semana!”. Estou farto! Esta insatisfação deixa-me louco. Este luar de Agosto deixa-me louco... Sinto-me capaz de tudo!!
Daqui a pouco todos acordarão...
O espectáculo vai começar!!
Aos seus lugares meus senhores!
Que alucinação!!
Vão sentir medo e deslumbre!!
Vão viver emoções fortes!!
Vão sentir-se vivos!!
E vão agradecer-me!! “Obrigado Sr.Afonso, foi um espectáculo maravilhoso!”, “nunca tinha visto coisa mai’linda!”.

Eu sei que nunca vos passaria pela cabeça, que pudesse fazer algo de errado. Decepcionado com este quotidiano sem sabor, decidi mostrar o quanto também sou capaz de merecer o vosso espanto.
Perguntarão porquê, mas não é preciso aprofundar muito as razões: estou farto desta existência estúpida de ter de fazer os mesmos gestos todos os dias diante de uma pequena multidão igual nos passos e na máscara.

Quando lerem a carta que estou escrevendo, tentem perceber porque razão um homem nascido nas Beiras e bem acolhido pelos alentejanos resolve executar o que acabei de fazer.
Tudo isto foi congeminado ao longo de noites, semanas, meses.....
A consciência acalmando os ímpetos, lavrando o caminho apetecido, condenando o desvario.... A vontade firme a apoderar-se do meu espírito, enfrentando os alarmes da moral, rejeitando regras, rejubilando com o espectáculo antecipado de clarões sublimes...

E agora... Meu Deus, o que é que eu fiz... A Florentina... Coitadinha da minha Florentina..... Com os seus bordadinhos, todo o seu processo de construção de enxovais... Já não a suporto! “Afonso, vem almoçar! É meio-dia e meia!!”, “Afonso, vais vestir essa camisa que já está toda velha? O que é que as pessoas vão pensar? Que eu não trato de ti?”. Já não aguento mais!! Quero comer às horas que me apetecer, que tiver fome! Quero vestir o que eu quiser!!

Quero ser livre!

Pela primeira vez fui capaz de fazer algo de diferente! Uma coisa que ninguém esperaria de mim... Mas na verdade fui eu que ateei o fogo que devorou aqueles sobreiros.

Confesso que agora sinto um vazio dentro de mim. O que há depois da felicidade máxima? A sensação de que jamais se poderá chegar tão longe. A angústia da felicidade! O que vem depois? A vergonha que não suportarei. Os olhares reprovadores e ameaçadores. Já nada me prende aqui. A minha Florentina... Ela ficará bem! Os moços virão apoiá-la. A mercearia... Poderá vendê-la, o que lhe proporcionará conforto financeiro para o resto dos seus dias.

Resolvi escrever uma carta para o Posto da Guarda. Quando a lerem já me terão encontrado, baloiçando ao vento, num cadáver de sobreiro chamuscado. O cheiro da terra queimada será o último que sentirei. Morrerei na escuridão.

Vou ser notícia pelo país inteiro!! Serei noticia de abertura nos telejornais!! É esta esperança que me move! A fama, finalmente... Os meus 5 minutos de fama..."

("Cinco minutos" - Conto classificado em 2ºlugar, nos 'Quartos Jogos Florais-2004', promovidos pela Alma Alentejana)

4 comments:

oasis dossonhos said...

És uma querida. Que bela surpresa! Obrigado. Porque é que eu não te conheci nos anos 80 quando era ainda mais speedado?
My Good, o que esta parelha podia ter feito!!! ( e poderá fazer!!!)
Ehehehehehehe
LFM

oasis dossonhos said...

És uma querida. Que bela surpresa! Obrigado. Porque é que eu não te conheci nos anos 80 quando era ainda mais speedado?
My Good, o que esta parelha podia ter feito!!! ( e poderá fazer!!!)
Ehehehehehehe
LFM

oasis dossonhos said...

És uma querida. Que bela surpresa! Obrigado. Porque é que eu não te conheci nos anos 60 quando era ainda mais speedado?
My Good, o que esta parelha podia ter feito!!! ( e poderá fazer!!!)
Ehehehehehehe
LFM

oasis dossonhos said...

És uma querida. Que bela surpresa! Obrigado. Porque é que eu não te conheci nos anos 80 quando era ainda mais speedado?
My Good, o que esta parelha podia ter feito!!! ( e poderá fazer!!!)
Ehehehehehehe
LFM